Aos 73, filha solteira de ex-deputado ganha pensão há 46 anos: ‘Nunca dependi’

A Câmara e o Senado pagam pensões mensais de até R$ 35 mil a filhas solteiras de ex-parlamentares e ex-servidores. Previsto numa lei sancionada por Juscelino Kubitschek em março de 1958, o benefício atende até hoje 194 mulheres e custa, por ano, R$ 30 milhões – o equivalente ao dinheiro necessário para construir 500 casas populares do Minha Casa Minha Vida. A norma foi derrubada em 1990, mas foi mantido o privilégio para quem já estava na folha de pagamento.

Denúncias de pagamento indevido não faltam. No mês passado, a Polícia Legislativa passou cinco dias no Rio para investigar o estado civil de uma pensionista. A notificação partiu do Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou inconsistências no registro da beneficiada a partir de cruzamentos de bases de dados.

Num relatório sobre a viagem, um agente da Polícia Legislativa escreveu que, após uma “exaustiva” investigação, descobriu que a mulher tinha um marido. A pensionista foi indiciada por estelionato em inquérito sigiloso encaminhado ao Ministério Público Federal.

Pelos critérios do Congresso, a pensão deve ser paga até a filha se casar, ter uma união estável ou conseguir um emprego público permanente. Mesmo quando completa 21 anos, a filha solteira mantém o direito.

Uma das maiores pensões do Congresso é paga à filha de um ex-analista do Senado. Desde 1989, ela ganha R$ 35.858,94 por mês, em valores brutos. Outras 29 mulheres recebem, cada uma, R$ 29.432,27 de pensão por serem dependentes de ex-servidores da Casa. Todas estão incluídas na categoria “filha maior solteira” na folha de pagamento.

‘Nunca dependi dessa pensão’

Filha do ex-deputado federal por São Paulo João Sussumu Hirata, a pesquisadora de 73 anos admitiu que recebe o benefício de R$ 16,8 mil mensais – R$ 218,4 mil por ano -, pagos pelos cofres da Câmara. Mesmo dizendo que não considera justo o privilégio, justifica o recebimento sob o argumento de que foi orientada pelo advogado nesse sentido. Helena optava por repassar os valores à mãe, falecida em 2016. “Nunca dependi dessa pensão pois sempre tive bolsa ou trabalho remunerado”, disse ela, que recebe a aposentadoria do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), órgão francês onde trabalhou por 31 anos.

Helena recebe a pensão desde que o pai faleceu, em 1974. Militante feminista, ela reconhece que o benefício expõe a desigualdade dentro do universo feminino no Brasil. “As mulheres chefes de famílias, dentre as quais um número significativo de mães solteiras, são hoje mais de 40% no Brasil.”

 

A pesquisadora admitiu não depender da pensão e ter outras fontes de renda, inclusive como aposentada do centro de pesquisas francês. Disse, ainda, que o montante era automaticamente repassado à mãe dela. “Ela faleceu em 2016 e desde então a pensão fica na minha conta”, afirmou Helena, de 73 anos.

É o mesmo valor da pensão que ganha a filha de um ex-deputado federal do antigo Estado da Guanabara, unidade da federação extinta há 44 anos. Empossado em 1967, o parlamentar morreu três anos depois e a sua herdeira entrou no cadastro de pensionistas, de onde nunca mais saiu.

Tanto a Câmara quanto o Senado admitem que dependem das próprias pensionistas para atualizar os cadastros. “O Senado fiscaliza, anualmente, a condição de ‘solteira’ das pensionistas por meio do recadastramento anual obrigatório que elas realizam, sob risco de suspensão ou cancelamento da pensão”, informou a Casa em nota. A Câmara não respondeu ao pedido de esclarecimento.

Auditoria

A pensão para filhas solteiras não é benefício exclusivo do Legislativo. Desembolsos também são feitos para pensionistas da União e do Judiciário. Até 2014, a despesa total custava R$ 2,2 bilhões, incluindo pensões civis e militares. O valor foi levantado em auditoria recente feita pelo TCU.

Em 2016, a Corte de Contas apontou 19 mil pagamentos com suspeitas de serem indevidos para filhas solteiras mapeadas em 121 órgãos da administração pública direta federal.

O acórdão atacou pagamentos a filhas solteiras que eram, ao mesmo tempo, beneficiárias e detentoras de atividades remuneradas nos setores público e privado. O TCU entendeu que a “dependência econômica” deveria ser comprovada para que os benefícios fossem mantidos. Qualquer remuneração superior ao teto do INSS representaria independência financeira e, portanto, no entendimento da Corte, suspenderia a pensão.

Supremo

A interpretação do TCU fez com que os órgãos federais, inclusive o Congresso, suspendesse as pensões. Na prática, porém, pouca coisa mudou. As beneficiárias passaram a pleitear a manutenção das pensões no Supremo Tribunal Federal (STF) e foram atendidas

Em setembro de 2019, o ministro Edson Fachin, do STF, suspendeu o acórdão do TCU e manteve a interpretação original da lei. Ele decidiu que devem perder o benefício apenas as pensionistas que casarem ou assumirem “cargo público permanente”. Fonte Correio do Estado