
Em 12 anos de pontificado, papa Francisco trouxe a Igreja Católica para o século 21
Coração e cérebro da Igreja Católica, a Praça São Pedro costuma atrair milhares de fiéis todos os dias. Pois o papa Francisco, o argentino que morreu nesta segunda-feira, 21, viveu um momento insólito em 27 de março de 2020: rezou e abençoou o mundo em uma praça completamente vazia. Um cenário bem diferente do que se viu ao longo do seu pontificado de 12 anos, marcado por viagens e por multidões que acompanharam o pontífice que voltou a trazer carisma para o Vaticano.
Era uma sexta-feira chuvosa e o planeta vivia um misto de medo, apreensão e incerteza diante da covid-19 que começava a se alastrar – a Itália, naquele momento, era um dos países mais afetados. Com seu gesto histórico, Francisco deu mostras, como ocorreu ao longo de seu pontificado, que não se furtava a se posicionar em momentos críticos da humanidade, como guerras, crises migratórias, dilemas da inteligência artificial e as mudanças climáticas.
Nascido em Buenos Aires, em 17 de dezembro de 1936, Jorge Mario Bergoglio foi um homem de posições firmes, contundentes e, não poucas vezes, polêmicas. Dono de trajetória, gestos e mensagens marcadas pela humildade, foi eleito papa em março de 2013 em um cenário inédito nos últimos séculos: sucedeu a um sumo pontífice ainda vivo, Bento XVI (1927-2022), que renunciou em um momento de profunda crise na cúpula da Igreja.
Daí em diante, o cardeal argentino tomaria para si o cetro de Pedro, um protagonismo mundial e uma série de outros ineditismos. Foi o primeiro nascido no continente americano, o primeiro vindo do hemisfério sul – como ele mesmo costumava dizer, foram buscá-lo “lá no fim do mundo”.
Tornou-se ele o primeiro comandante da Igreja Católica não europeu em mais de 1,2 mil anos – em uma instituição bastante influenciada pelo que ocorre o Velho Continente. E o primeiro papa jesuíta da história.
Morre papa Francisco, aos 88 anos:
Influenciado pelo cardeal brasileiro Cláudio Hummes (1934-2022), seu amigo pessoal e quem o ladeou no momento de sua apresentação à praça como papa eleito, o argentino escolheu para si o nome de Francisco – o primeiro chefe do Vaticano a assumir tal nome em toda a história da Igreja. Fez isso porque Hummes, franciscano, pediu a ele logo após o resultado do conclave que não se esquecesse “dos mais pobres”.
Para especialistas, mais do que os gestos pastorais que sempre privilegiaram os menos favorecidos, a grande marca de Francisco foi ter atualizado a Igreja Católica, finalmente situando-a como uma instituição apta a debater questões da contemporaneidade. Francisco posicionou-se inúmeras vezes, em discursos, documentos e entrevistas, sobre o problema da tragédia climática enfrentada pela humanidade, sobre a crise humanitária vivida por refugiados e tantos outros imigrantes e sobre os absurdos da desigualdade social que deixa tantos e tantos famintos ao redor do planeta.
Ao mesmo tempo, no ponto de vista administrativo, ele eliminou cargos e promoveu uma reforma na Cúria Romana – o que alimentou o ânimo de opositores descontentes, vale ressaltar –, reduzindo consideravelmente os privilégios da elite purpurada e tornando a Igreja uma entidade mais preparada para ser aquilo que ele sempre defendeu, uma organização “em saída”, pronta para ir ao encontro das necessidades do mundo.
Segundo o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Júnior, professor na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Francisco teve um “pontificado reformador” e é nesse sentido que devem ser interpretados “seus limites e suas potencialidades”.
“Seu foco foi cuidar dos migrantes e refugiados, das periferias do mundo, fazendo ecoar a voz de Francisco em favor da sinodalidade, da casa comum e da fraternidade universal. Um novo modo de agir na Igreja como bispo e pastor universal”, avalia Altemeyer. “Suas palavras foram esculpidas por experiências existenciais: misericórdia, missão, alegria, reforma, fraternidade universal, cuidado com o planeta, colegialidade e diálogo.”
Povo de Deus
“A motivação foi a missão, o cuidado pastoral dos empobrecidos e o rompimento claro do clericalismo que fez da Igreja uma instituição autocentrada e distante do Evangelho de Jesus. Francisco afirmou a tempo e contratempo que era chegada a hora histórica da Igreja em saída, de seguir as intuições e textos do Concílio Vaticano II. Ele começou a delinear o novo rosto episcopal e ministerial incluindo todo o Povo de Deus”, complementa. “Escolheu bispos atentos aos pobres, movidos por amor à humanidade sofredora, lugar teológico privilegiado do corpo de Cristo na história.”
“A marca dele é o povo. Não dá para dizer que foi o papa do povo, porque todos os papas o são, mas a visão dele de povo marcou muito a Igreja”, argumenta o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma. “No momento em que o mundo político teve populismos pipocando aqui e ali, ele não foi um papa somente popular e nem populista, mas percebeu a importância que o povo tem para a Igreja, o povo de Deus, essa ideia do povo de Deus.”
“A grande marca do pontificado de Francisco foi colocar a Igreja Católica, de fato, no século 21″, sintetiza o teólogo, historiador e filósofo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Foi um homem preocupado com uma Igreja de fato católica, ou seja, uma igreja universal. Ele mudou a cara da Igreja, que deixou de ser eurocêntrica e passou a ter representação universal.”
Essa mudança estrutural foi visível na própria estrutura do cardinalato. Seu pontificado foi o primeiro da história do catolicismo em que a proporção de purpurados europeus deixou de ser a maioria absoluta. Em 2019, quando Francisco nomeou 13 novos nomes, a Europa tinha 43% dos representantes da alta cúpula da Igreja. Na virada do século 19 para o século 20, mais de 98% dos cardeais eram europeus. Quando Francisco assumiu o trono de Pedro, a cifra era de 61%.
“A Igreja deixou de ser eurocêntrica porque começou a ter um escopo muito maior, de nomeações a representações, mostrando que era, de fato, universal. A Igreja periférica, que até então não tinha vez nem voz, passou a ter representação no pontificado de Francisco. Ele conseguiu montar uma Igreja com uma outra cara, de fato antenada com os problemas do século 21″, completa o teólogo.
“Francisco traz alguns acertos com o passado da Igreja, aquela Igreja que, no passado, colocava embaixo do tapete questões espinhosas”, avalia Moraes. “Por exemplo, os erros, os crimes cometidos por padres e bispos (principalmente no que tange à pedofilia). Francisco cortou na carne. Foi muito corajoso, um papa que teve a hombridade, a atitude cristã de não enterrar os problemas, ciente de que para continuar atuante no mundo a Igreja precisava rever os próprios pecados, os próprios erros.”
Na opinião do professor, esta é a grande herança, o grande legado deixado pelo argentino. “Algo que vai ecoar por muito tempo ainda na história”, afirma.
“Ele foi um papa que o tempo todo estava pensando no povo, tanto que o período mais esquisito de seu pontificado foi aquele do auge da pandemia, quando ele ficou sozinho no Vaticano e não podia estar com as pessoas”, diz Domingues. “Foi um período mais de baixa.”
Do ponto de vista administrativo, seu pontificado deixa marcas incontestáveis. “Francisco alterou inúmeros procedimentos jurídicos ligados à questão da pedofilia entre os clérigos católicos, propôs novas funções dos serviços da Cúria Romana reagrupando dicastérios e alterando os seus diretores ampliando a presença de leigos e mulheres, limitou o número de títulos honoríficos na instituição católica, criou a comissão de controle do Instituto para as Obras de Religião (IOR) e balancetes transparentes das contas da Santa Sé”, enumera Altemeyer.
Meio ambiente
Para o vaticanista Domingues, a marca importante é o aspecto “da cultura popular”, a importância que ele deu para a “devoção popular”. “Ele tratou da Igreja como povo de Deus, encarando os problemas que as pessoas sofrem. Com ênfase na questão ambiental por causa dos impactos que a questão tem para o povo, para os pobres, para a casa comum. A questão ambiental está ligada ao social, tudo na ênfase da pessoa humana”, diz.
Em maio de 2015, Francisco publicou a primeira encíclica escrita exclusivamente por ele – a anterior, Lumen Fidei, foi parcialmente feita por seu antecessor, Bento XVI. Ali ele começava a dar as cartas de seu pontificado. Laudato Si’ foi a primeira encíclica do catolicismo a ter o meio ambiente como tema principal. Para tanto, Francisco lançou mão não só de princípios religiosos, como também de argumentos científicos e políticos. O argentino tinha consciência de que assunto era (e é) o grande tema da humanidade nesta primeira metade do século 21.
“Francisco lidou bem com essa temática, tratando de como devemos cuidar das questões ambientais, da riqueza gerada pela natureza e da violência decorrente de conflitos inerentes a qualquer processo que gera riqueza”, afirma Moraes.
Além da encíclica, o assunto seguiu sempre em pauta no pontificado de Francisco. Em 2019, por exemplo, o Vaticano sediou um sínodo de bispos dedicado a discutir a questão amazônica. Em seguida, o papa criou a Conferência Eclesial da Amazônia (Ceama), órgão cujo primeiro presidente foi o seu amigo Hummes. Também foi Francisco o primeiro papa a fazer um cardeal oriundo da região amazônica – o brasileiro Leonardo Steiner, apresentado em consistório realizado em agosto de 2022.
Magistério
Analistas costumam concordar que o ponto que alçou o então cardeal Bergoglio ao posto de papável foi no Brasil, em 2007. Na ocasião, o religioso, que era presidente da Conferência Episcopal Argentina, coordenou os trabalhos e o texto final da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e Caribenho (Celam), ocorrida em Aparecida. Bento XVI, que era o papa, esteve no País e participou da abertura do encontro.
Ao longo de sua trajetória, Francisco teve uma postura claramente diferente de seu antecessor. Seja porque parecia mais aberto a temas morais, como o acolhimento de divorciados e pessoas homossexuais, como pelo fato de ter uma postura mais carismática, quase bonachão, sempre bem-humorado e pronto para uma conversa trivial. Bento, por sua vez, passou uma imagem mais sisudo, mais intelectual.
Por outro lado, analistas acreditam que havia uma continuidade no magistério de ambos. “Ambos representam uma longa tradição. Foram conservadores porque a Igreja, em si, é conservadora”, diz Moraes. “E sempre será, porque tem um capital eclesiástico e cultural gigantesco para zelar, que não pode ser desfeito.”
“Nesse sentido, há uma linha de continuidade”, completa o teólogo. Mas Moraes faz uma ressalva importante: Bento foi o homem da ortodoxia, que em sua trajetória, desde antes mesmo do seu pontificado, demonstrava uma preocupação com a doutrina. Francisco, por sua vez, foi o homem da ortopraxia, pois sempre pareceu determinado em colocar em prática os gestos, antes mesmo de querer tratar sobre a fé.
Outro ponto importante que não pode ser negligenciado foi o papel de Francisco enquanto líder mundial, sobretudo em tempos de pandemia e de crescimento da extrema direita no mundo. Estranhamente, quando se pensa que ele era o líder da tradicional e conservadora Igreja Católica, couberam a ele os discursos mais progressistas – enquanto lideranças políticas laicas, como os ex-presidentes do Brasil Jair Bolsonaro e dos Estados Unidos Donald Trump assumiram posturas ultraconservadoras.
Nesse sentido, observadores notaram uma inversão, sendo a Igreja responsável pelas palavras de acolhimento a minorias, mesmo àquelas que parecem não compatíveis com a doutrina (como os casais gays). E os estados civis, democráticos, atravessaram momentos de perda ou ameaças de perda de direitos humanos fundamentais outrora conquistados.
Isto acabou colando em Francisco um rótulo que nunca foi seu de fato: o de que ele seria um líder “de esquerda” – e aqui as aspas cabem perfeitamente, porque dizem respeito não à esquerda política em sim, mas à visão que grupos extremistas de direita passaram a ter sobre o espectro de esquerda, classificando como “de esquerda” todos aqueles cujas vozes foram emprestadas para a defesa de grupos minoritários.
“Francisco foi acusado de comunista, de ser um papa de esquerda… Ele nunca foi de esquerda, mas do ponto de vista político ele tinha, sim, uma afinidade maior com as pautas que tradicionalmente são mais defendidas pela esquerda”, analisa Domingues. “Isso não quer dizer que ele fosse de esquerda.”
“Ele defendeu a questão ambiental, os pobres, uma renda básica universal, uma melhor distribuição de renda”, afirma o vaticanista. “Do ponto de vista da fé e da moral ele foi totalmente tradicional, ortodoxo no sentido da palavra. Isso não mudou.”
“Do ponto de vista humano, institucional, a Igreja Católica é uma instituição que congrega diversas visões. Ela é una, mas tem a capacidade de trazer para dentro de si todas as tendências que aparecem na sociedade, inclusive as tendências políticas”, diz Moraes. “No Brasil, especificamente, grupos radicais tenderam a misturar política com política eclesiástica.”
Isso resultou, ao longo da década de 2010 e, sobretudo, durante os anos de Jair Bolsonaro, em muitos católicos tradicionais assumindo uma leitura fundamentalista da religião. E questionando a autoridade do papa. Não foram poucos, nesse contexto, que chegaram a negar a legitimidade de Francisco, afirmando que o verdadeiro papa ainda era Bento 16, mesmo este tendo renunciado anos atrás por livre e espontânea decisão.
“O problema foi a politização que as pessoas fizeram desse processo. Muitas pessoas enxergaram que fazer a opção, como Jesus Cristo, pelos pobres, desvalidos e necessitados, era uma postura de alguém de esquerda”, diz Moraes. “A culpa, no caso, não era necessariamente em quem faz as ações cristãs, seja José, seja Maria, seja o papa Francisco. Mas, sim, da cabeça do sujeito que não consegue enxergar isso como uma atitude eminentemente cristã.”
“Ao valorizar temas populares, como a pobreza, a migração, os povos indígenas, a Amazônia, as pessoas em situação de rua, os idosos, o que ele chamava de cultura do descarte, a defesa da vida de forma integrada e profunda, ele foi coerente com os direitos humanos”, afirma Domingues.
Legado
Francisco deixa uma Igreja completamente reorganizada. “E bastante preocupada com questões sociais, ambientais. Uma Igreja antenada com os problemas do século 21″, avalia Moraes. “Francisco promoveu uma Igreja com honradez, decência. Com coragem de agir. Transparente. Esperamos que seu sucessor continue esse trabalho, aprofunde-o, leve adiante essa causa.”
Para o teólogo, Francisco concluiu um processo que vinha sendo proposto desde os anos 1960, por meio do Concílio Vaticano II. “Ele cumpriu de maneira interessante uma série de propostas do concílio e ainda trouxe grandes avanços”, diz.
“Que o próximo papa tenha esse compromisso também, e a Igreja Católica continue com seu papel profético no mundo, mais do que seu papel sacerdotal”, afirma Moraes. “O papel do profeta é questionar as estruturas, levantar perguntas, incomodar, tirar as coisas do lugar. A Igreja passou muito tempo nas mãos de sacerdotes. Profetas, como Francisco, são necessários para incomodar, para que a Igreja saia da zona do conforto e viva uma experiência diferente.”
Domingues ressalta que Francisco, pela força de seu pontificado, conseguiu fazer com que a Igreja Católica voltasse a ser uma voz importante nos debates mundiais. “Ele dizia que o mundo estava ferido e a Igreja precisava sair e cuidar dessas pessoas. E propôs caminhos.”
“Por muitos anos, a sociedade, o público fora da Igreja de uma forma ampla, não esperava mais da Igreja uma instituição global. Não se esperava nada de novo, nenhum tipo de movimento. A Igreja era um ícone de tradição e de estabilidade, de lentidão”, diz Domingues. “Francisco reabriu essa fronteira do diálogo da Igreja com o mundo. As pessoas paravam para ouvir o que o papa Francisco tinha a dizer. O mundo se importava com os grandes temas que ele quis defender. Agora é esperar continuar.” fonte terra
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