Mulheres trans e travestis são invisíveis para o SUS.

“A rede de atenção básica não reconhece minha neovagina”. É com essa frase que Alexandra Braga, fundadora e vice-presidente do Fórum LGBT de Mogi das Cruzes resume o atendimento em postos de saúde pela rede do Sistema Único de Saúde. Sem atendimento humanizado que respeita o nome social das pacientes, especialização médica para lidar com mulheres trans e travestis que passaram ou não pelo processo transexualizador e ou cirurgia de redesignação sexual, além da falta de ajustes no sistema de registro de atendimento, estas pacientes ficam cada vez mais distantes de um acompanhamento médico de rotina e preventivo.

Alexandra, por exemplo, passou pela cirurgia de redesignação sexual (procedimento cirúrgico que consiste na construção de uma vagina, a chamada de neovagina) em 2010, mas até hoje, 12 anos depois, só consegue realizar seus atendimentos de rotina no Hospital das Clínicas de São Paulo, onde recebe acompanhamento médico do processo transexualizador e da própria cirurgia. Uma mulher transexual no mesmo perfil que ela, precisa fazer – além do acompanhamento hormonal, acompanhamento ginecológico especializado, mamografia e outros exames clínicos, mas nenhum deles é oferecido em postos de saúde. Se quiser ou precisar fazer qualquer tipo de exame preventivo, é preciso pagar por consultas particulares, o que também não é fácil de encontrar. “Existe um descaso estrutural que passa pela formação acadêmica dos médicos, já que é muito difícil encontrar profissionais especialistas no atendimento desse perfil de pacientes, e chega nas políticas públicas, que não incluem os nossos corpos no sistema de atendimento”, considerou.

E se para uma mulher que passou pelo processo transexualizador e pela cirurgia de redesignação sexual o atendimento é difícil, imagina para aquelas que ainda não iniciaram o tratamento – ou por falta de vagas nas unidades de referência, ou porque não querem. “O que vemos são jovens trans e travestis sem qualquer atendimento médico preventivo em saúde, porque elas têm medo das violências que podem sofrer em postos de saúde como uma negativa de atendimento por parte da equipe, ter que se cadastrar com o gênero diferente do qual elas se identificam para conseguir acessar exames específicos, ou ainda falta de preparo técnico para lidar com esses corpos. Por isso, muitas jovens ainda fazem tratamento hormonal clandestino, porque esses remédios são vendidos facilmente em farmácias, ou aplicam silicone industrial, tudo isso sem qualquer acompanhamento profissional”, considerou Alexandra.

Desde 2013, o SUS pode oferecer cirurgia de prótese mamária em mulheres trans (Portaria nº 2.803 de 19 de novembro de 2013), mas não prevê a retirada preventiva.

“O fato é que em algum momento, o sistema de saúde vai ter que olhar para o corpo da pessoa trans. Se não for na atenção básica e no cuidado preventivo, vai ser na emergência, para evitar uma morte. Fato é que vão ter que em algum momento olhar pra esses serem humanos”, defendeu.

Prevenção

Só quando começou seu processo transexualizador em 2019 é que a jornalista Gabryela Garcia teve acesso a uma bateria de exames para acompanhar seu estado de saúde e conhecer o próprio corpo. Logo na primeira consulta, recebeu um pedido médico para realizar uma ultrassom, onde foi possível identificar o crescimento de um nódulo no testículo direito, com grande chance de desenvolvimento de um câncer. Por causa do diagnóstico, o processo de transição com hormônio só começou em 2021. “Eu sempre pesquisei muito sobre transição e queria fazer isso com acompanhamento médico, porque sabia que seria um processo delicado, que mexe totalmente com o corpo. Mas confesso que antes desse processo, eu não fazia qualquer acompanhamento médico, exames de rotina, nada disso”, destacou.

Com três meses de tratamento hormonal, ela perdeu 40% da musculatura corporal. No início deste ano, analisando ultrassons e exames de ressonância magnética, o médico constatou grande vascularização no nódulo e pediu uma cirurgia de emergência, afim de evitar que pudesse se espalhar para outros locais. “Até pra conseguir acompanhar esse processo foi difícil porque, pra conseguir acessar esses exames do testítulo, a unidade de saúde precisa te cadastrar com o documento masculino – ainda que você tenha os documentos retificados para o feminino. Isso porque o sistema só libera esse tipo de exame para o gênero masculino, o que afasta muitas mulheres trans que tem o órgão e precisam cuidar da saúde. É um detalhe simples no sistema, que poderia ser arrumado com uma linha de código, mas que para nós faz toda diferença”.

A cirurgia será feita em uma clínica particular em São Paulo, ainda neste mês. Para custear todas as despesas médicas e hospitalares, a jornalista realiza uma vaquinha online para arrecadar R$ 6.380,00 que ainda faltam. O procedimento completo custará R$ 15 mil. É possível fazer a doação pela campanha criada no Apoia-se ou via Pix. “Infelizmente o acompanhamento médico para mulheres trans e travestis no Brasil só olha questões de estética”.

Políticas Públicas

Para tentar diminuir a distância entre as pacientes trans e travestis do Sistema Único de Saúde, o Governo do Estado do Espírito Santo criou, dentro da Secretaria Estadual de Saúde, a área de Promoção da Equidade. O objetivo é promover e discutir políticas públicas para olhar grupos sociais que tem mais dificuldade no acesso à saúde, como a população LGBT, povos tradicionais, população de rua e negra. “Nosso grande desafio é garantir que alguns atendimentos de acompanhamento médico sejam absorvidos pelos municípios, como consultas com endocrinologistas, ginecologistas, urologistas, nutricionistas, psicólogos e outros profissionais, além de exames de rotina. Até 2023 já devemos ter algum avanço dentro do estado nessas tratativas. É o básico, uma vez que essas mulheres nasceram, cresceram, trabalham, geram recursos e são cidadãs dessas cidades. Elas merecem ser atendidas localmente e de forma efetiva”, explicou o técnico da área Júlio César de Moares.

Atualmente o Estado só atende processo transexualizador. “Em 2018 criamos o ambulatório dentro do Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes, da Universidade Federal do ES, que atende processo transexualizador. As cirurgias de redesignação sexual eram custeadas pelo governo em outras unidades de saúde, mas por enquanto as cirurgias estão suspensas porque não conseguimos prestadores de serviço habilitados para este tipo de atdendimento”, destacou. Em pouco tempo, a unidade passou a atender 400 pessoas, quando a capacidade era de 170, gerando uma fila de espera. Pelo menos 30 pessoas aguardam pela cirurgia de redesignação sexual.

“Nós sempre mantemos diálogo com o Ministério da Saúde porque na atenção básica, você só consegue registrar um exame de ultrassom vaginal, por exemplo, para um paciente do sexo feminino. Se eu tenho um homem trans para atender, por exemplo, o sistema do SUS não entende que o gênero dele é compatível.Mas isso não pode ser um fator de impedimento pro atendimento”, destaca.

Direitos

Segundo o relatório da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), “em 2006, o SUS introduziu, por meio da Carta dos Direitos dos Usuários da Saúde, o direito ao uso do nome social, pelo qual travestis e transexuais se identificam e escolhem ser chamados socialmente – e não apenas nos serviços especializados que já os acolhem, mas em qualquer outro da rede pública de saúde”. Já o processo transexualizador foi instituído em 2008, passando a permitir o acesso a procedimentos com hormonização, cirurgias de modificação corporal e genital, assim como acompanhamento multiprofissional. O programa foi redefinido e ampliado pela Portaria 2803/2013, passando a incorporar como usuários do processo transexualizador do SUS os homens trans e as travestis, tendo em vista que até então apenas as mulheres trans eram assistidas pelo serviço.

Antes de prosseguir você tem o direito de pedir para atualizar o seu cadastro com seu nome social e ele tem que ser garantido pelo SUS. “Juridicamente, está sancionado desde 2009 por meio da Portaria nº 1.820 que estabeleceu a Carta Direitos dos Usuários do SUS. O inciso I do artigo 4º da carta aponta: identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras 14 Conselho Nacional de Saúde formas desrespeitosas ou preconceituosas. ” fonte terra