Herança escravocrata e informalidade: desafios impostos à filiação sindical dos domésticos
“Até quando iremos fazer de conta que a empregada doméstica é uma pessoa da família e estamos fazendo um favor em contratá-la?”. A provocação atribuída a Patrícia Tuma Martins Bertolin, doutora em Direito do Trabalho e docente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, ecoou outras vozes de participantes do 3º Simpósio de Sindicalismo Sul-Mato-Grossense, igualmente defensores da extensão dos direitos laborais assegurados aos empregados urbanos e rurais para os trabalhadores domésticos.
O Brasil contabiliza pelo menos 7 milhões de empregados domésticos registrados em carteira, número desproporcional considerando que cerca de 70% da categoria atua na informalidade. As mulheres representam maioria: 92% da classe. Esses dados e outras reflexões sobre a conjuntura e as especificidades do labor doméstico foram partilhados entre sindicalistas, trabalhadores, estudantes em geral e integrantes de instituições públicas vocacionadas ao tema, na última quinta-feira, 2 de dezembro. O evento virtual ocorreu no período das 8h às 15h30, sendo transmitido ao vivo pelo canal no YouTube da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas.
Ao compor a mesa de abertura do evento, a procuradora-chefe do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Mato Grosso do Sul, Cândice Gabriela Arosio, destacou que apesar das conquistas históricas na esfera laboral, muitos desses direitos ainda não resguardam os trabalhadores domésticos, que pela própria informalidade ficam invisíveis às lentes de estatísticas.
“Sabemos que, muitas vezes, são trabalhadores que dividem o lar com os seus empregadores e acabam criando um envolvimento emocional. Essa relação pautada pelo afeto geralmente dificulta a proteção dos direitos trabalhistas, como é o caso do recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), que por muitos anos foi afastado da classe. Se existir um sindicato forte, se houver uma representação coletiva consolidada, provavelmente os direitos ficarão resguardados”, enfatizou. Arosio ainda chamou atenção para um outro problema envolvendo a classe: os recentes resgates de empregados domésticos em situação análoga à escravidão, principalmente mulheres negras, em que não há qualquer reconhecimento dos direitos sociais trabalhistas.
Herança escravocrata
Patrícia Tuma Martins Bertolin, doutora em Direito do Trabalho e docente na Universidade Presbiteriana Mackenzie, abriu o ciclo de expositores abordando questões contemporâneas do trabalho doméstico no Brasil. Em uma perspectiva histórica do tema, partindo de episódios que remetem ao regime de escravidão no país e à coisificação do ser humano enquanto objeto, lembrou que hoje assistimos a novas configurações de exploração do labor, heranças refletidas na precarização que atinge inúmeros descendentes dos ex-escravizados. “Quando o Brasil rompeu com aquele regime, não houve políticas públicas para incluir os ex-escravizados e boa parte das mulheres continuou no trabalho doméstico”, disse Bertolin.
Os avanços na década de 30 do século passado, acrescentou a docente, com leis esparsas disciplinando o trabalho em um primeiro momento, ao lado do propósito governista de industrializar o Brasil mas sem afetar sua base agrária, permitiram que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada em 1943, tratasse dos empregados domésticos ainda que de maneira superficial – assim considerados aqueles que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial delas. A finalidade não lucrativa, um tratamento conceitual equivocado na visão da palestrante, justificou uma cidadania de segunda categoria para esse nicho de empregados. “Estamos diante do fenômeno de feminização da pobreza, que tem gênero, raça e classe social. Mulheres negras estão no mais baixo patamar da pirâmide social”, apontou.
Ana Lúcia Stumpf González, procuradora do Trabalho no Rio Grande do Sul, deu sequência à narrativa do longo caminho de luta pela equiparação dos empregados domésticos. Segundo ela, somente com a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) das Domésticas, em 2013, e a Lei Complementar nº 150, em 2015, a valorização ganhou projeção, tendo alguns direitos vigência imediata – garantia de salário-mínimo, proteção contra a retenção dolosa de salário, limitação da jornada em 44 horas semanais, remuneração do serviço extraordinário.
A procuradora recordou que, nas primeiras décadas do século 20, o serviço doméstico era mencionado nas leis sanitárias e policiais somente com o intuito de proteger a sociedade contra as trabalhadoras domésticas, percebidas explicitamente como ameaças em potencial às famílias empregadoras. “O recrutamento exigia um cadastro prévio no gabinete de identificação e estatística, com fotografia, certificado de antecedentes criminais, entre outros requisitos. A regulamentação da atividade ficava mais próxima de uma repressão criminal do que de proteção ao labor”, comentou.
González também destacou que o MPT elaborou, no ano passado, uma cartilha com medidas para reduzir os riscos de contágio por Covid-19 entre trabalhadores domésticos. No ápice da pandemia, a instituição defendeu como regra a liberação da categoria para o cumprimento da quarentena, com a manutenção dos empregos e o pagamento integral dos salários pelos patrões. Para ela, a sindicalização é um passo importante e o acesso à gratuidade de Justiça também.
No Brasil, a primeira morte em decorrência do coronavírus foi de uma trabalhadora doméstica, que laborava na capital do Rio de Janeiro. A vítima tinha 63 anos e deixou um filho de 39 anos que morava com ela e outros parentes em um bairro humilde da cidade fluminense. A empregadora, que viajou à Itália, não avisou a funcionária que poderia estar doente, segundo relatos de parentes da doméstica.
Desafios contemporâneos do sindicalismo
No segundo e último painel do evento, que tratou dos desafios do sindicalismo na atualidade e as mulheres no movimento sindical, a coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, Luiza Batista Pereira, disse que o Brasil viu nascer o movimento sindical da categoria na cidade de Santos, em 1936, por iniciativa de Laudelina de Campos Melo, pioneira na defesa de melhores condições laborais. O movimento se ramificou para outras regiões do país, como o Nordeste, somente na década de 60. “Nossa luta é desafiadora. A gente fala em direitos porque os deveres já nos são apresentados no momento da entrevista para o contrato de trabalho”, concluiu.
Érika Andreassy, pesquisadora do Instituto Latino-Americano de Estudos Socioeconômicos, acrescentou que a atual crise sanitária escancarou uma desigualdade bastante brutal na sociedade. Ainda conforme a pesquisadora, no marco da pandemia, mulheres foram o gênero mais vulnerável e impactado. “O desemprego feminino é quase 50% maior do que o masculino. Há uma estratificação da força de trabalho – mulher branca vale mais que mulher negra, por exemplo – fomentando a divisão no interior da classe, rebaixando a valorização profissional, invisibilizando a ascensão de categorias como a dos domésticos”, sublinhou.
Mediadora desse último painel, a procuradora do Trabalho em Mato Grosso do Sul Claudia Fernanda Noriler Silva sustentou que o retrocesso social atinge sobremaneira os empregados domésticos, sendo a informalidade uma das consequências dos processos que dificultam a representação sindical dessa categoria.
Além do MPT-MS, o simpósio foi organizado pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul/Curso de Direito do Campus Três Lagoas (UFMS/CPTL), pelo Centro Acadêmico de Direito Olyntho Luiz Cestari Mancini e pelo Sindicato dos Docentes da UFMS (ADUFMS), Subseção de Três Lagoas.
Fonte: Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul
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