Na Semana da Mulher, MPT-MS reforça compromisso com a ruptura da cultura do assédio moral e sexual

“Não toca em mim”. A curta, porém, aguda expressão interrompida na sequência por sucessivos episódios de choro e tristeza descortina parte de uma sombria realidade enfrentada por inúmeras mulheres no ambiente laboral: a cultura do assédio, cindido nas variantes moral e sexual, que muitas vezes são identificadas em uma mesma situação. O tabu, o silêncio e o preconceito, produzidos pelo domínio ainda masculino das instituições, podem obstruir uma percepção fidedigna dos fatos e da brutalidade abafada por uma estufa de paredes e portas.

A frase de efeito que abre essa reportagem foi extraída de um depoimento coletado no bojo de investigação conduzida pelo procurador do Trabalho Jeferson Pereira, no município de Dourados. O inquérito civil, instaurado em 2017, teve como propósito apurar denúncia de assédio sexual envolvendo servidoras terceirizadas de um hospital naquela localidade. Em depoimento, uma das vítimas narrou que, por duas vezes, foi chamada pelo investigado até a sala dele no intuito de elucidar alguns fatos ocorridos em relação aos serviços administrativos. Em ambas as ocasiões, a porta trancada lhe causava constrangimento “pois não havia necessidade disso”. Ela ainda revelou que não questionava o denunciado sobre essas atitudes, “porque tinha medo, pois ele alterava a voz”. As situações foram levadas até a Delegacia da Mulher em Dourados, pelo marido da vítima, por meio do registro de um boletim de ocorrência contra o acusado.

Notificado pelo Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul (MPT-MS) para prestar esclarecimentos sobre os fatos relatados, o investigado tentou alterar a verdade e adaptar o contexto para seu discurso, com referências que pudessem encobrir a violência perpetrada, tamanha sensação de superioridade e certeza da impunidade. “A denunciante é que está tentando manchar minha reputação ilibada de servidor público e pai de família com alegações infundadas, com nítida intenção de se vingar por um ato administrativo legítimo e justificável, que foi o pedido de sua substituição como preposta e demais atos”, argumentou em meio aos questionamentos do procurador Jeferson Pereira.

Ao examinar o caso e pelas provas juntadas ao procedimento, Pereira restou convencido de que as trabalhadoras eram submetidas a comportamentos sexuais indesejados, que causavam constrangimento e afetavam a dignidade delas. À época, para reparar a conduta nefasta, o MPT-MS firmou com o assediador Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), em que ele se comprometeu a não repetir nem tolerar este tipo de tratamento desrespeitoso, seja em face das vítimas ou de outros trabalhadores, e independentemente do vínculo com o hospital. Além disso, o réu viabilizou a confecção e divulgação de outdoor, em Dourados, abordando campanha do Ministério Público do Trabalho contra a prática do assédio sexual.

Não é mais assim!

Os assédios sexual e moral começam a deixar de ser um fato natural e uma contingência do destino feminino quando enorme força é colocada em movimento pelas vítimas, que se propõem a falar. O “é assim que funciona” e “assim sempre foi” passam a não funcionar mais assim.

Em 2016, outro caso emblemático aportado no MPT-MS também desnudou a prática de atos assediantes, moral e sexualmente, e de abuso de poder diretivo cometido por superior hierárquico contra trabalhadoras de mais um estabelecimento hospitalar em Dourados. As situações chegaram à instituição em outubro daquele ano. A partir das informações colhidas com os depoimentos das vítimas e de testemunhas, e após uma análise criteriosa de vasta documentação apresentada para comprovar as alegações delas, a procuradora do Trabalho Cândice Gabriela Arosio concluiu pela veracidade e gravidade dos fatos.

“Ele tinha por hábito, ao chegar perto das vítimas, passar a mão na nuca e nos cabelos delas. Algumas refutavam o comportamento, dizendo que não gostavam desse tipo de atitude. Muitas notavam que, a partir do momento em que elas evitavam isso, iniciavam as retaliações e as implicâncias do acusado. Uma delas foi sendo conduzida a tal ponto que acabou sendo demitida; outra pediu demissão por não concordar com o ambiente de trabalho que estava inserida. Ele costumava imputar penalidades às vítimas que não correspondiam às suas investidas, manipulando fatos e mentindo sobre eles, com vistas a obrigá-las a pedir demissão. Brincadeiras maliciosas a respeito do corpo também eram direcionadas a algumas mulheres subordinadas ao acusado. Em relação a outros empregados, impunha sua autoridade através de ameaças e terror psicológico”, descreve com riqueza de detalhes a procuradora Cândice Arosio, em despacho anexado aos autos.

Como desfecho do caso, a unidade hospitalar firmou acordo extrajudicial com o MPT, comprometendo-se a não permitir nem tolerar situações que evidenciem assédio sexual, causador de dano à personalidade, à dignidade, à intimidade, à integridade física e/ou psíquica dos seus empregados ou trabalhadores que lhe prestem serviços, devendo intensificar eventos de conscientização e prevenção sobre o tema assédio sexual, além do estabelecimento de canal de comunicação e denúncias interno, com garantia de sigilo à vítima. Também houve a pactuação da garantia do atendimento psicológico da(s) vítima(s), além da estabilidade no emprego por seis meses.

Particularidades

Arosio esclarece que a agressão moral é caracterizada por reiteradas ofensas à dignidade de pessoas, no exercício de emprego, cargo ou função, expondo-as a situações vexatórias e humilhantes que causam sofrimento físico ou mental e provocam um ambiente laboral degradante e hostil, culminando muitas vezes com o pedido de demissão da vítima. Por sua vez, o assédio sexual é qualificado como uma conduta repetitiva e prolongada, que constrange majoritariamente mulheres mediante insinuações com a finalidade de obter alguma relação ou vantagem de cunho sexual. Ambas podem acontecer de maneira vertical (do empregador ou chefe contra o subordinado, e vice-versa) ou horizontal (entre colegas do mesmo nível hierárquico).

Nova realidade

Desde o início da pandemia de Covid-19, em março de 2020, o ambiente laboral foi modificado no Brasil e muitos trabalhadores tiveram que se adequar às rotinas do home office. O assédio corporativo, por exemplo, ganhou novas formas com o teletrabalho e, segundo especialistas, se antes uma vítima poderia demorar até meses para perceber que estava em uma situação de sofrimento, agora a incerteza pode ser ainda mais prolongada.

Assim como na modalidade presencial, no ambiente remoto há muitas possibilidades de configuração de assédio, alerta a procuradora do Trabalho Rosimara Delmoura Caldeira, coordenadora regional do Grupo de Trabalho para Igualdade de Gênero. A apresentação de e-mails, bilhetes, prints de tela, gravações de áudios e conversas em celulares e em redes sociais, contendo cobranças excessivas ou indevidas de demandas de trabalho, bem como com conteúdos grosseiros ou indesejáveis, são consideradas opções de provas contra um possível assediador.

Por conta da crise sanitária que sucumbe o país, o MPT elaborou uma nota técnica com diretrizes para proteger trabalhadores de assédios no trabalho. No documento, a instituição orienta que os empregadores respeitem a jornada contratual na modalidade de teletrabalho e em plataformas virtuais, com a compatibilização das necessidades empresariais e trabalhistas com as responsabilidades familiares. O MPT também defende a adoção de etiqueta digital em que se oriente toda a equipe, com especificação de horários para atendimento virtual da demanda, assegurando os repousos legais e o direito à desconexão, bem como medidas que evitem o bullying no ambiente de trabalho.

Nos últimos cinco anos, MPT recebeu mais de 33 mil denúncias, ajuizou 1.051 ações e firmou quase 3 mil termos de ajustamento de conduta versando sobre assédio moral e sexual. Nesse período, a regional em Mato Grosso do Sul registrou 461 denúncias, firmou 26 termos de ajustamento de conduta e ajuizou 19 ações relativos aos temas.

Embora os números pareçam vultosos, existe a subnotificação de casos que pode ser explicada porque as vítimas têm vergonha de denunciar, dificuldade de provar a prática, receio de perder o emprego ou, ainda, de questionamentos e até dúvidas sobre suas condutas, levantadas pelos maridos no caso de a mulher ser casada.

O ano da pandemia também contabilizou retrocessos nessa esfera. Em 2020, a instituição coletou 4.826 denúncias de assédio moral no país, queda de 36% em relação ao ano anterior. Quanto ao assédio sexual, foram 311 denúncias, 34% a menos do que em 2019. Mas um quantitativo reduzido não significa que a irregularidade está em baixa nem que um rigoroso enfrentamento tem sido adotado por empresas.

A procuradora Rosimara Caldeira acrescenta outro importante fator para a redução dos números: a Reforma Trabalhista de 2017, principalmente pela aplicação do princípio de sucumbência. “Isso significa que a parte que for vencida na ação terá que arcar com os custos do processo. Hoje, só se ajuíza uma ação caso o reclamante tenha segurança de que, em tese, haverá êxito naquela proposição”.

É crime?

A legislação brasileira tipifica somente o assédio sexual como crime e penaliza com até dois anos de detenção, podendo aumentar em até um terço se a vítima for menor de 18 anos. “Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”, diz o artigo 216-A do Código Penal.

Já o assédio moral ainda não é crime, apenas uma irregularidade trabalhista, mas existem tipos penais nos quais essa modalidade pode se encaixar como, por exemplo, crimes contra a honra ou contra a liberdade individual. Além disso, pode constituir ato de improbidade administrativa, pois segundo entendimento do Superior Tribunal de Justiça configura violação aos princípios basilares da Administração Pública.

A prática, no entanto, está mais próxima de se tornar crime, punida com até dois anos de detenção e multa, pena que pode ser aumentada em até um terço, se a vítima tiver menos que 18 anos. O Projeto de Lei nº 4.742/01, que visa tipificar o assédio moral no trabalho, foi aprovado na Câmara dos Deputados e agora aguarda apreciação pelo Senado Federal.

Caso o assédio moral no trabalho passe a ser considerado crime, para que o fato seja analisado na esfera penal, a vítima precisará denunciar também, por meio de representação, ao Ministério Público federal ou estadual, que são responsáveis pela apuração de crimes.

Onde denunciar

Antes de tudo, a vítima deve recorrer aos canais internos e de acolhimento da empresa, como Recursos Humanos e Ouvidoria, e dar ciência aos responsáveis por esses setores sobre os atos praticados pelo assediador. Mas, caso não se sinta segura nem à vontade, pode procurar o Ministério Público do Trabalho.

“Ela deve acessar o nosso site, onde vai encontrar o link Serviços e, dentro dele, um formulário Denúncias, em que poderá detalhar tudo e o sigilo será totalmente resguardado. Cabe ao Ministério Público atuar para combater o assédio no trabalho, mas é importante ressaltar que o empregador é o responsável pela promoção de um ambiente que iniba e desestimule esta conduta, por meio da criação de um canal interno e da designação de gestores para que recebam denúncias dos trabalhadores. Os empregadores também precisam articular palestras e ações de sensibilização sobre a perspectiva de gênero no universo corporativo”, orienta Rosimara Caldeira.

Cartilha

Além de campanhas institucionais desenvolvidas há anos, o Ministério Público do Trabalho elaborou uma cartilha elucidativa sobre o assédio sexual, com perguntas e respostas, que pode ser baixada acessando o link.

Referente aos procedimentos IC 000321.2017.24.001/5-18 e IC 000206.2016.24.001/1

Fonte: Ministério Público do Trabalho em Mato Grosso do Sul
Informações: (67) 3358-3035 | (67) 99275-8636 | (67) 99211-3420
www.prt24.mpt.mp.br | Twitter: @MPT_MS | Instagram: @MPT_MS